Há uma passagem épica na história da nossa pátria, com referência à Guerra do Paraguai, mais precisamente no episódio da Retirada da Laguna, magistralmente descrita pelo Visconde de Taunnay.
Foi quando o Coronel Camisão determinou que 102 combatentes, portadores do “cólera-morbus”, fossem abandonados, depois da Batalha de Nhandipá, no dia 26 de maio de 1867. Perseguidos pelos paraguaios, Camisão não teve outra alternativa, senão abandoná-los, para não comprometer a segurança do grosso da tropa, estropiada, faminta e inúmeros feridos; carregar os coléricos era humanamente impossível.
O único sobrevivente daquela chacina praticada pela Cavalaria Paraguaia foi o Cabo Calixto que mais tarde descreveu aquela tragédia:
Entre os coléricos havia a vivandeira Preta Ana, gravemente doente, mas ainda com pequena vitalidade, sendo encarregada de empunhar um cartaz com dizeres em letras grandes, escrita com carvão, pedindo misericórdia. Eu e meus companheiros fomos levados para a mata e depois de já haver ficado noite. Era um capão redondo, cujo centro fora roçado.
As perguntas que fazíamos sobre os motivos de nos deixarem ali, diziam que iam fazer uma emboscada aos paraguaios e que depois viriam buscar-nos. Ao alvorecer do dia imediato, estávamos sós. Só se ouvia de todos os lados um único clamor: ai, ai, água, água pelo amor de Deus!
Mas não havia ninguém que desse água aos doentes. Ainda no lusco-fusco dessa manhã, apareceu um esquadrão da cavalaria paraguaia. Ao chegar, a cavalaria deu uma descarga contra nós. Vendo, porem, que éramos doentes, os soldados apearam e, formando fileira, foram lanceando a eito, sem poupar nenhum dos que se achavam ao alcance de seus braços. A chegada dos paraguaios foi ali como creolina na bicheira; todos, desesperadamente, procuravam levantar-se e fugir. Eu estava bem no meio dos doentes, mas não tinha forças para ficar em pé, fui de gatinho pulando por cima dos outros, e caindo do lado de baixo do terreno, que era um declive, continuei a engatinhar pelo mato abaixo, até um corregozinho de pouca água, ouvindo sem cessar um terrível coro de ais, os mais cruéis lamentos. Deitei-me de bruços e bebi dois ou três goles de água. Incontinenti, senti uma espécie de surdez e a vista escura e, num estado de ligeiro desmaio, fiquei alguns minutos.
Recobrando os sentidos, continuei mato adentro, até sair do campo. Então vi que o capão estava todo cercado de soldados. Vendo que alguns coléricos que conseguiram chegar até o campo eram lanceados, fiquei na beira do mato. Mas ou menos a uns cem metros, achavam-se alguns cavaleiros paraguaios. Escondi-me debaixo de um pé de cipó prata. Esse pé de cipó tinha um tronco grosso e dos lados os galhos chegavam até o chão.
Tem aquele nome porque suas folhas são verdes por cima e brancas por baixo.
O dia estava acabando de clarear. Deitei-me de bruços e com as mãos ia cautelosamente puxando as folhas secas do chão e me rebuçando com elas.
Cobri primeiro os pés e depois o resto do corpo, até a cabeça, mas de modo que continuasse a poder observar o que se passava por perto. Pelas oito horas da manhã os paraguaios desarrearam os animais e próximo dali acamparam, ficando quietos o resto do dia.
Dali iam buscar água naquele córrego, passando perto do pé de cipó, em cujos ramos pisavam. O que eu mais receava era que seus cachorrões me descobrissem. Achava impossível que estes não dessem pela minha presença, adestrados como eram...
Os clarins já haviam dado o toque de partida e debandada toda tropa. No roçado todos os coléricos estavam mortos, o corpo da Preta Ana estava todo lancetado, encimado com um cartaz: “COMPAIXÃO PARA COM OS COLÉRICOS”, mas os paraguaios lanceiam com os seus cavalos aqueles pobres diabos, abandonados à própria sorte, esquecidos pela história tradicional.