Boa leitura!

domingo, 28 de outubro de 2012

Chulipa



           No jornal, “Clarinadas da Tabatinguera", de fevereiro de 2002, escrevi sobre Mário Neves, grande amigo, que já transpôs o Portal da Eternidade e habita a casa do Pai. Morreu nos pagos de Brás Cubas e bendita seja a terra de Santos que acolheu  o seu corpo.
           Mário Neves e eu éramos então soldados da Força Pública, no velho quartel do CIM (Centro de Instrução Militar), nos idos de 1939, quando estudávamos para a realização de um sonho, sermos aprovados, como cadetes, na Escola de Oficiais (hoje Academia do Barro Branco) e alcançarmos o oficialato da gloriosa Corporação.
           Naquela época o dinheiro era curto. Uma pensão de fundo de quintal nos vendia uma marmita, com um pouco de arroz, um pouco de feijão, um ovo e um bife tridimensional (três centímetros).
           Todos os dias, quando a marmita chegava, também chegava uma cachorrinha vira-lata, linda, branca com alguns espaços pretos, saudando-nos com o abano de sua cauda. A saudação era mais para o tridimensional bife do que para Mário e eu. Apelidamos a cadelinha de Chulipa. Dividíamos então o bife, o arroz e o feijão para 3 bocas famintas. O ovo, Chulipa repelia para a alegria nossa.
           Lendo o nosso jornal, Benê, nossa associada, viúva do saudoso Cel. Waldemar Alves de Almeida, ficou encantada, telefonando-me, com a voz embargada pela emoção, certamente relembrando uma época feliz de sua vida.
           Casal feliz -Waldemar e Benê- ela linda como uma estrela de Hollywood e ele, guapo rapaz, meu colega no aspirantado de 1944.
           No ano seguinte, Waldemar e Benê se casaram e viveram a realidade de seus sonhos, durante longos e felizes anos, mas a vida é algumas vezes triste, Waldemar também partiu, e é certo que habita a casa do Senhor.
           A notícia que Benê me deu, quando me telefonou, foi que a linda Chulipa, separada de nós em 1940, apegou-se a eles. Em fins de semana, Waldemar, enamorado, vinha ao encontro de seu grande e único amor, Chulipa vigiava e aprovava o lindo romance. Na foto que ilustra esta crônica, Waldemar e Benê, acompanhados da linda cadelinha branca com manchas pretas.
       Chulipa morreu, velhinha, nos braços de Waldemar, que com lágrimas nos olhos, a enterrou dignamente em seu quintal.
         Assim me contou Benê... os dias, os meses, os anos se passaram. Benê envelheceu, adoeceu e partiu... um sonhador,  romântico e ficcionista, olhando para o céu, certamente verá, entre as estrelas, quatro sombras, a menor delas abanando a cauda.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Revolução Constitucionalista - 80 anos

Com a morte trágica do Coronel Júlio Marcondes Salgado, a 23 de julho de 1932, a Força Pública teve novo Comandante Geral, o Coronel Herculano de Carvalho e Silva, que até àquela data comandava o 2.º Batalhão, em duros combates, no Túnel da Mantiqueira, divisa com o Estado de Minas Gerais. 
Décadas após à epopeia bandeirante, fieis admiradores do grande comandante conseguiram a provação do comandante geral, como resgate de uma injustiça batizar o Batalhão que comandou de 2.º BPM/M CORONEL HERCULANO DE CARVALHO E SILVA.

Do Livro “Clarinadas da Tabatinguera”, extraímos o seguinte:


CORONEL HERCULANO DE CARVALHO E SILVA

Em fins de setembro de 1932, quando a derrota das armas constitucionalistas era iminente, o Cel. Herculano de Carvalho e Silva, Comandante Geral da Força Pública, sentindo a luta desigual, cruel e fratricida, reuniu-se em Campinas, acompanhado da alta oficialidade e com o Cel. Alexandrino Gaia, do Exército, e dessa reunião foi lavrada a seguinte Ata: “Aos vinte e sete dias do mês de setembro de mil novecentos e trinta e dois, às nove e meia horas, numa das salas do Posto de Comando do Destacamento, em Campinas, situada em prédio do ex Campinas Hotel, convocado pelo Cel. Herculano de Carvalho e Silva, compareceram os seguintes oficiais: Céis. Herculano de Carvalho, Eduardo Lejeune e Alexandre Gama, Ten. Céis. Alexandrino Gaia, Francisco Julio César Alfieri, Patrício Batista da Luz, Luiz de Faria e Souza, Virgílio Ribeiro dos Santos, Romão Gomes e Mário Rangel e Maj. José da Silva.

O Cel. Herculano de Carvalho e Silva, fazendo o uso da palavra, apresentou o Ten. Cel. Alexandrino Gaia, distinto e valoroso oficial do Exército Brasileiro, comandante de um dos setores do Vale do Paraíba, para expor a situação militar daquela frente e a sua projeção sobre os demais setores da luta. O referido oficial demonstrou a evidência que vários fatores, de ordem moral e material, tornavam insustentável a manutenção das posições e a continuação da guerra no Vale do Paraíba, sendo inevitável o recuo progressivo dos elementos que ali combatem desde o início das hostilidades. Assim pensaram todos os oficiais que com ele cooperam, do Exército e da Força Pública, unânimes em reconhecer o sacrifício imenso a que seriam expostos os habitantes das cidades e vilas sujeitas aos horrores da luta. A continuação da resistência corresponderia à destruição completa da próspera e rica região ocupada pelas tropas. A única solução que via para esse complexo problema era a proposta de um armistício para a cessação da luta.

E, no momento, dada ainda a situação da relativa consistência dos nossos elementos, poderíamos negociar um acordo em que ficassem ressalvados dois pontos importantíssimos para o bom nome e prestígio dos que se achavam à testa do movimento: a dignidade militar e a garantia dos interesses múltiplos de ordem militar  política e econômica do Estado e da nação. O Cel. Herculano passou a ler, a seguir, as cartas de apoio a essa iniciativa que acabava de receber dos seguintes comandantes de tropa da Força Pública, que operavam naquela região: Ten. Céis. Octavianos Gonçalves de Silveira, Theóphilo Ramos e Antônio Inojosa, e Maj. Benedicto Ferreira de Souza. Assim inteirados da exata situação daquele setor, fizeram uso da palavra diversos comandantes, acordando todos, sem uma única exceção, que o que se passava no Vale do Paraíba não era um fenômeno local e sim geral, pois nos demais setores a contingência era a mesma, resolvendo que diante da impossibilidade da vitória pelas armas, era um dever de patriotismo cessar imediatamente a luta para evitar novos e pesados sacrifícios ao Estado e ao País, deliberando:

1º.)  Ficava o Cel. Herculano de Carvalho e Silva, apoiado pelas forças do Exército e da Força Pública, indicado para entrar em um entendimento imediato com as autoridades militares e civis, estaduais e federais, para a suspensão da luta;
2º.)  No caso de encontrar resistência por parte de qualquer desses elementos, ficava igualmente autorizado a agir como supremo representantes das forças em armas, concertando com o adversário o acordo almejado;
3º.)  Que fossem cientificados dessa deliberação os camaradas do setor sul;
4º.) Que as providências necessárias para o início das negociações tivessem execução imediata. Para constar, foi lavrada a presente ata, que, depois de lida e achada conforme, vai por todos assinada, ficando o original em poder do Cel. Herculano de Carvalho e Silva e uma cópia devidamente autenticada, no arquivo do comando do destacamento.

Com esse gesto, o Cel. Herculano carreou para o seu nome a pecha de traidor e muita literatura houve, responsabilizando a Força Publica e seu chefe pela derrota de São Paulo. 
          

Em seu volumoso livro: “A Revolução Constitucionalista”, ele começa assim:

Nunca imaginávamos viéssemos a publicar um livro e, muito menos versar a matéria tão delicada que nos traz recordações tão dolorosas. Quando, no início da campanha constitucionalista, indiferentes a sorte que nos aguardava, recebemos ordens de seguir e partimos a frente de nossa tropa; e, mais tarde, já assoberbados pela luta, deixamos aquele Túnel impiedoso e voraz, para assumir o comando da Força Pública de São Paulo e daqui rumamos para Campinas – nunca nos passou pela ideia nos víssemos, com o correr do tempo, na contingência de vir a público, para defender-nos de um crime que não praticamos.

Já não bastavam ao mísero soldado os horrores da guerra, com todo o seu cortejo de privações e de misérias; de riscos e ciladas; no desconforto das trincheiras; as saudades do lar distante; da efígie adorada de um filho, da esposa estremecida. E, com uma guerra se decidir-se por si mesma, com a vitória do mais bem aprestado em armas e munições, culpe-se alguém do desastrado desfecho. Invente-se um traidor. Procure-se um Judas.

Quando, já na boca do povo o revoltante epíteto, tentamos restabelecer a verdade dos fatos com “As razões de minha atitude”, pessoas, que nunca supusemos capazes de semelhante vilania, asseguravam que deturpamos os acontecimentos, exageramos as ocorrências, fantasiamos impossíveis, tudo com o fito de provocar a confusão e encobrir a verdade.

Assim – propalavam – deslavada mentira foi o que dissemos a propósito de armamento e munição; apócrifa a assinatura do Ten. Cel. Romão Gomes na ata lavrada em Campinas; calúnia assegurarmos que esse mesmo oficial propugnara pela imediata cessação da luta; em suma, impossível São Paulo confessar-se vencido, a não ser por traição. E traição houve – concluíram – porque o próprio General Comandante das Tropas Constitucionalistas tornara público que São Paulo ia render-se.

Restava descobrir o traidor. Era necessário, era inelutável que alguém, mau grado seu, assumisse inteira responsabilidade do desastre militar, e pagasse, ele só, o mal que os outros praticaram. Numa palavra: fazia-se mister um Judas.

A hedionda figura de Calabar não se prestava para o símile, porque a sua traição consultara o prêmio de três galões: a de Joaquim Silvério dos Reis também não vinha ao caso, porque consistira em delatar conspiradores e só visava a honrarias. Perfeita era a de Judas: por 30 dinheiros traíra o seu Benfeitor. O Judas da causa de São Paulo satisfizera-se com pouco; outros, que com onze mil contos...

O primeiro apontado como traidor foi o Gen. Klinger, por deliberadamente ter tomado a iniciativa do armistício. Todavia, como nos coube consumá-lo, da sua cabeça foram desviados os apodos, as injúrias, os baldões, e fomos apontados, ao comentário público, como o traidor. Em pouco, propalou-se a nova, a sensacional nova de que fora estigmatizado o verdadeiro traidor da sacrossanta causa. E o povo – miseravelmente iludido durante quase três meses; o povo que mais se sacrificara na campanha constitucionalista e mais se apaixonara pela causa; o povo, obcecado pela ideia de traição, esposou-a. E passou um julgado que fôramos, de fato, traidor.

A tamanha calúnia, a insinuação malévola e propositada, serenamente respondemos com nosso “Manifesto”, em que fizemos timbre em não “acusar a quem quer que seja”. Não nos deram crédito e imputaram-nos falsos os poucos documentos que nele apareceram.

Venham outros, pois, os documentos originais para substituir as cópias; os “fac-similes” mais convincentes; aduzam-se outras provas para restabelecer a verdade dos fatos, adulterada, não por nós, mas por aqueles a quem era prejudicial; confundam-se os embusteiros, que nada fizeram pela campanha, indiferentes à sorte das armas, e que agora só imaginam como castigar o traidor; apontem-se à opinião pública os nomes daqueles que, useiros e vezeiros em torcê-la a seu talante, açularam o ódio popular contra a Força Pública de São Paulo.

Defendemo-nos, defendendo-a. Estamos nessa obrigação, assiste-nos esse direito. Já que ninguém se levantou por nós, dentre os que, de perto, aqui conosco, dia por dia, seguiam a marcha dos acontecimentos, levantemos nós mesmos. Façamos a nossa própria defesa. Revidemos o insulto que nos atiraram.
E, quando a História, amanhã, reviver essa magnífica epopéia bandeirante, este mesmo povo há de convir que nunca, nunca desde quando criada, mais esteve a Força Pública ao seu lado do que nesta ocasião.
São Paulo, novembro de 1932.
Cel. Herculano C. e Silva.

Revendo a revista MILITIA, editada em 1949, deparamos com um artigo do saudoso Cel. Luis Tenório de Brito, sendo oportuno reproduzirmos uma parte:

Quando, a 3 de outubro, cheguei a São Paulo, a cidade como que despertava de importuno pesadelo. Mantida a população durante três meses sob atmosfera artificial, que a imprensa e rádio alimentavam e as circunstâncias justificavam, o desfecho negativo da Revolução trouxe-a bruscamente à realidade. E há então o que invariavelmente ocorre em tais ocasiões: a procura de um responsável. Com as faculdades de exame e de raciocínio paralisadas, as causas remotas e determinantes do fracasso ficam no olvido, relegadas à posteridade que as estudará devidamente, distribuindo responsabilidades que o presente não pode fazer. Mas, aí será tarde demais para a curiosidade do momento. É da história. 

Coube, entre nós, ao Cel. Herculano de Carvalho e Silva, comandante geral da Força Pública o ingrato designo, como alhures tem acontecido em circunstâncias idênticas a conspícuas personalidades, ser apontado como o causador da derrota.
O futuro, porém, na “voz da história” absolverá esse valoroso chefe das injustas imprecações que lhe atirou desordenada paixão...

Está aí, caro leitor, lançada a ideia do ressarcimento do bravo Comandante Herculano Carvalho e Silva, o legalista de 22, 24 e 30, o herói da memorável Batalha do Túnel, na Mantiqueira, em julho de 1932. Comandou os bravos entre os bravos, auxiliado pelos destemidos Octaviano Gonçalves da Silveira, João Máximo de Carvalho, Benedito Ferreira de Souza, Agostino de Moura Uchoa (morto em combate) e outros brilhantes oficiais do legendário 2º. Batalhão de Caçadores, o “Dois de Ouro”, como era conhecido desde as duras campanhas de 1893-94, no Paraná, sustentadas contra os federalistas de Gumercindo Saraiva.

Achamos que os ânimos já serenaram e a História verdadeira haverá de ser feita em torno de um injustiçado, e para essa nobre finalidade convidamos os homens de bem de São Paulo e do Brasil.

Estivemos no dia 1.º de outubro pp na Assembleia Legislativa, quando o Exmo Sr. Deputado Federal Marco Maia, Presidente da Câmara de Deputados Federais, em Brasília, recebeu a medalha comemorativa da Revolução Constitucionalista de 1932. A gratidão da nossa Assembléia Legislativa foi o fato dele presidir o Espaço Cultural da Câmara Federal, fazendo expor e prestigiando a amostra de relíquias relativas à epopeia paulista. Em seu discurso de agradecimento relembrou o quanto a Democracia Brasileira foi ofendida, no período getulista que, em 1930 e em 1937 fechou o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas dos Estados e a Câmara de Vereadores dos Municípios.