Boa leitura!

domingo, 13 de janeiro de 2013

MUTUM E CHICO PRETO

Nosso instrutor de Armamento, Material e Tiro, na Academia do Barro Branco, era o Tenente Aquino, audaz cavalariano, várias vezes campeão nos torneios hípicos, como Salto, Pólo, Adestramento e outras competições que a maravilha do cavalo proporciona.

Suas aulas, teóricas ou práticas, dadas com objetividade e motivação, duravam quarenta minutos e, nos dez restantes, o assunto era livre, permitindo perguntas, respondidas com maestria, fazendo também os seus questionamentos importantes, que muito contribuíram para o aprimoramento da nossa cultura.

Como oficial do Regimento “9 de Julho”, tinha direito a dois cavalos, adestrados com muito carinho, para as disputas internas ou na Sociedade Hípica Paulista, concorrendo também em outros Estados e no Distrito Federal, na época Rio de Janeiro.

Um detalhe, o tenente gostava de futebol e era um fanático sãopaulino. Muitas vezes, ao iniciar a aula, um cadete mais afoito lembrava de uma vitória tricolor ou de uma conquista sua na equitação, montando os seus cavalos, Mutum ou Chico Preto, aí o mestre Aquino “arquivava” suas anotações sobre a matéria e os cinquenta minutos regulamentares, mais os dez de intervalo, avançando mesmo no horário do outro professor, eram absorvidos nas exposições detalhadas daqueles eventos vitoriosos, futebol ou hipismo (a bem da verdade, ele repunha a matéria na aula seguinte, não prejudicando o calendário elaborado pelo Diretor de Ensino).

Ficávamos maravilhados pela exuberância de seu discurso, descrições homéricas, parecendo um ator famoso, num teatro repleto de aficionados, representando uma peça ou uma ópera. Leônidas, o “Diamante Negro”, era o seu ídolo, e na descrição do “Gol de Bicicleta”, o mestre gesticulava, energizando todo o corpo, levantando os braços e as pernas chutando não a bola e sim as pernas de um aluno; numa ocasião, dramatizando demais o salto do Mutum, quebrou duas cadeiras da sala de aula.

Mas um dia, inesquecível dia, era uma segunda-feira. No domingo, montando Chico Preto, havia conquistado a Taça, numa competição entre os melhores Oficiais do Regimento.

Adentrou à sala de aula, ar circunspecto, demonstrando certa fadiga. Recebeu a saudação regulamentar e, incontinente, mandou buscar uma metralhadora, objeto de sua aula prática, sobre o funcionamento de uma arma automática.

- Meus alunos, quinta-feira passada os senhores aprenderam toda a nomenclatura de uma metralhadora e agora vamos à teoria do tiro, que pode ser intermitente, isto é, tiro a tiro, e automático. Municiada a arma, dado o primeiro tiro, os gases expandidos levam a culatra para trás, aí a mola propulsora a empurra para frente, ejetando o cartucho, ao mesmo tempo que o percursor detona outro tiro. Se o dedo do atirador permanecer acionando o gatilho, teremos o tiro contínuo, automático, propiciando as rajadas...

- “Seu Tenente, posso fazer uma pergunta para o senhor?”
(era aquele aluno afoito, cara de pau).

- É sobre a matéria?

- Não “seu” Tenente, é que a classe inteira quer dar os parabéns ao senhor, pela grande vitória, obtida ontem no picadeiro do Regimento; o senhor montou o Chico Preto ou o Mutum?


Nesse ponto, Aquino transmudou-se, foi às nuvens, sorriso nos lábios, brilho nos olhos, alma em festa, começou a descrever sua soberba conquista:


- Eram doze obstáculos a percorrer em doze minutos, uma prova muito difícil. Então enquadrei Chico Preto nas ajudas e parti, pocotó, pocotó, pocotó, prolop, prolop, prolop (pocotó=trote e prolop=galope, termos onomatopaicos), saltei o primeiro obstáculo com zero falta, fiz uma curva à direita e pocotó, pocotó, pocotó, pocotó, prolop, prolop, prolop, prolop, venci o segundo obstáculo, uma cancela de dois metros de altura; o terceiro, o quarto e o quinto eram muito altos, com fossos retangulares cheios de água, aí eu levei os dois braços para a frente, roçando com as rédeas o pescoço de Chico Preto e pocotó, pocotó...


Nesse instante a porta da sala se abriu, entrando uma luzida comitiva – suspense, calafrios em todos nós, assustados com tantas estrelas, gemadas, galões resplandescentes, botas reluzentes, esporas brilhando, alamares faiscando.


Era o General Luiz Gaudie Ley, Comandante Geral da então Força Pública, com todo o seu Estado Maior e mais os Coronéis Diretor Geral de Instrução, Comandante do Centro de Instrução Militar (hoje Academia do Barro Branco), Diretor de Ensino e Capitães Ajudantes de Ordens... espetáculo inusitado e maravilhoso para nós, jovens alunos.

Mestre Aquino não se perturbou, e com uma calma indescritível “apeou” do Chico Preto e “montou” na metralhadora.

- Escola, Sentido! Pronto Senhor General, estava terminando uma aula de Armamento e Tiro. Peço licença a V. Exa para concluí-la.

- PERMISSÃO CONCEDIDA, Tenente!

Bem meus alunos, como estava explicando, se o atirador continuar pressionando o gatilho, o tiro da arma será automático, provocando as rajadas de metralhadora. Na próxima semana praticaremos o tiro no stand do Barro Branco.


O General ficou encantado, cumprimentando efusivamente o nosso instrutor, manifestando orgulho em comandar a Tropa Paulista. Recordou os seus tempos de juventude, o início de sua carreira nas terras gaúchas e, com muita eloquência, descreveu toda a sua carreira até o Generalato.


Passaram os anos, em 1944 fomos declarados Aspirantes a Oficial, a primeira turma a se formar no Barro Branco.

Em 1994, reunimos os dez remanescentes (Éramos 38 e, agora, neste dezembro de 2009, somos apenas meia dúzia) e convidamos o mestre Aquino, para compartilhar conosco a alegria, nesse momento tão maravilhoso. Na Capelania, após a missa de Ação de Graças, sentimos sua religiosidade, ele ajoelhado, fazendo suas orações frente ao nosso Padroeiro, o milagroso Santo Expedito.

Em seguida, na Academia do Barro Branco, com muita emoção, assistimos, os novos Cadetes, desfilando em nossa homenagem, arrancando-nos lágrimas dos olhos, do coração e da alma.

Percorremos todo o Quartel e sentimos que uma ilusão gemia em cada canto e chorava em cada canto uma saudade.

No almoço, o nosso querido Aquino, à cabeceira da mesa, era o dono da festa. Cada um de nós era um artista, dramatizando tudo, todos os momentos idos e vividos, em torno do grande mestre, que ria, gargalhava, por horas e horas. Os assuntos giravam, todos, em torno de futebol, de seus cavalos, da cena do General Comandante, ele apeando do Chico Preto e “montando na metralhadora...”

Quatro anos depois, o querido mestre Aquino, beirando os 90 anos, nos deixou, voou para a Eternidade, escoltado por um certo Centurião, Comandante da Cavalaria Expedita, iluminado pelas cintilações de mil galáxias.


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