Um
veterano, na perseguição à Coluna Miguel Costa–Prestes
nos contou:
-
“Fui soldado do 2º Regimento de Cavalaria da Força Pública em 1926, e, como bom militar,
sabia muito de disciplina e hierarquia militar, porém de tática sempre ficou por
conta dos oficiais superiores. Eu e meus companheiros conhecíamos o significado
na obediência consciente e do acatamento às ordens, sem bajulação, fator importante
nessa caminhada, eivada de sofrimentos, acarretados pela fome, fadiga e saudade
de São Paulo e dos entes queridos. Nosso Regimento desembarcou na cidade de Tavares,
ponto terminal da estrada de ferro Mogiana, de onde empreendeu sua marcha até a
cidade de Arraias.
A
Coluna rebelde, ao passar por cidades e vilas, levava tudo de roldão e o nosso Esquadrão, que fazia a vanguarda da tropa legalista, só encontrava em sua marcha
os restos deixados por ela, como cavalos cansados e outras migalhas; o povo se
encarregava de esconder coisas que nos poderiam ser úteis, agora, os homens
mais abastados da terra camuflavam seu gado e suprimentos.
Naquela
louca competição, entre acossados e competidores, nossos cavalos, um a um,
foram deixados para trás completamente estafados e nossa marcha, então,
prosseguiu a pé. O calçado se gastou, na cadência da passada sobre areia fina daquele
cerrados e das botas fizemos alpargatas, que na primeira chuva se inutlizaram.
Ao
longo das trilhas e caminhos, ostentando amargurada solidão, de quando em vez,
encontrasse sepulturas isoladas, cobertas de pedra, de um bravo inimigo
tombado; era mais um herói sepultado no coração da Pátria a pedir uma oração.
Quantos
como eles também tombaram anônimos, à beira de um regato sobre os chapadões
arenosos, nas orlas dos bosques, nos alcantilados montes das serras, no agreste
e sob a inclemência do tempo, sem terem, na hora derradeira, um último adeus,
uma gota d’agua a mitigar-lhe a sede e nenhum conforto espiritual!
Devido
ao forte calor, o Esquadrão progredia, quase sempre em marchas noturnas. Era um momento em que a nostalgia e a saudade nos tomavam de assalto, principalmente
nas madrugadas, quando avistávamos alguma “queimada”. Daí o espetáculo da
miragem: “ouvíamos” apitos de trens e tanger de sinos em pleno sertão e
“víamos” cidades iluminadas e o próprio prédio Martinelli em construção na
capital.
Não podendo juntar meu pano de barraca ao lado do tenente nem ao dos outros,
troquei-o por um papagaio baiano, que passei a conduzir a um galho adaptado ao
cano de um mosquetão, e com ele dividir a minha solidão no silêncio da mata.
Certa
noite, ao deitar, nas margens do Rio São Domingos, tive o cuidado em fazer uma
fogueira, para afastar felinos em grande quantidade naquelas paragens. Acordei
no dia seguinte, com o capote queimado e aos arredores do leito improvisado,
sobre a areia, sulcados de pegadas de onça.
Por
ser jovem, talvez, o meu tenente incubia-me de muitas missões. Em uma delas,
juntamente com mais um colega, fomos fazer a vanguarda do pelotão dentro da
área de operações. Era uma dia de calor escaldante e, à proporção que nos
aproximávamos de um rio, de águas límpidas e transparentes, percebemos que o
chão produzia certos sons semelhantes de um tambor, na cadência da passada. O
calor era insuportável e ao alcançar o rio, precipitei-me em suas águas.
Continuamos
a marcha e com ela aumentava aquele ruído estranho sob os nosso pés até que
avistamos, na encosta da serra, uma abertura que mais parecia a entrada de um
templo. Aproximamo-nos desse monumento em plena selva. Que espetáculo!
De
ambos os lados da gruta imensa, duas pedras negras delgadas, com suas faces
cortantes, mais lembravam sentinelas permanentes a desafiarem os tempos. Tive
medo e me recordei de Dante:
“Ó Tu que vens das dores à morada;
“Olha
como entras, e em quem estás fiando
Não
te engane do entrar tanta larguesa”
Desafiei Dante: Penetrei no Templo e me queidei extasiado! Flanqueando-o vi outras
sentinelas de pedras, olhei para cima e deparei os estalactites, testemunhas
seculares de encantador efeito. Pisava eu cristais e estalagmites; um fio de
água cristalina corria no centro da nave, tive ímpeto de unir-me às suas águas
e correr mundo.
Voltei
deslumbrado com essa maravilha mas o dever me chamava para a continuação da
marcha; maldito cumprimento do dever e bendita oportunidade de contemplar essa catedral no coração da selva.
Fiquei
sabendo depois que toda essa região era chamada Terra Ronca.
Andava
descalço e de pés feridos, com o fardamento em farrapos. A condição de simples
praça permitia-me o contato com a gente humilde do lugar e sofrer com ela.
Sentava-me
em pedras e troncos de árvores para ouvir os contos e lendas, cheios de
esperanças e misticismos. Uma delas era a narrativa da Pedra Divina – hoje deve
estar dentro dos limites de Brasília:
“...era
Cristo, que em sua peregrinação pelo mundo, naquelas paragens, deixara em baixo
relevo a marca de seu pé sobre uma grande pedra”.
Não
me foi possível a visita a esse lugar em face da continuação da marcha, como
também me foi tolhida a oportunidade de constatar outras histórias fantásticas
do povo.
Tínhamos
ordens de deter e revistar todos os elementos que encontrávamos nessa região.
Em consequência detivemos um caboclo que trazia um saco de lona cheio de
cartas, o qual ao ser interrogado, respondeu:
“Eu
e meus companheiros do Norte, Centro e Sul deste Brasil, vivemos a percorrer a
selva e os rios, onde habita o Uirapuru e canta o Rouxinol do Rio Negro, o
agreste sertão e as caatingas, os chapadões arenosos e as veredas, a ouvir o
canto saudoso da seriema, os pântanos e os lagos, as serras e os montes, os
caminhos e as coxilhas sem fim, sob o calor e o frio, o sol, o vento e a chuva,
na inclemência do tempo, às vezes montado em um pangaré, a distribuir esta
correspondência, pelas vilas povoados e cabanas.
Poucos
se lembram de nós, que somos únicos neste pioneirismo sofrido da Comunicação,
que em longas jornadas, nos alimentamos com rapadura e jabá e recebemos como
paga deste sacrificado trabalho, a quantia de 12 mil réis mensais”.
Visivelmente
comovidos, soltamos o patriótico e dígno correio, lamentando a sua triste
condição.
Um
praça ferido não podendo acompanhar o Pelotão, o nosso comandante deu-me ordens
para esperá-lo a fim de conduzí-lo numa dura jornada até o acantonamento
seguinte da tropa.
O
sítio agora não era aquele dos lindos buritis, das veredas, da Catedral na
selva e dos coqueiros de babaçu imponentes, onde a relva, as palmeiras e os
gigantes de pedra talhada davam, com orgulho, o tom de suas magestades.
Ficara
nesse ermo com minha nostalgia e solidão, entre o chapadão arenoso do cerrado e
o agreste sertão, com suas árvores de galhos desfolhados apontando aquela nudez
para o céu, como que a pedir misericórdia. O canto saudoso da seriema aumentava
a minha melancolia.
A
longa espera e a fome me torturavam. Perscrutei o horizonte e divisei, ao alto
e ao longe, um casebre e para lá me dirigi, encontrando um caboclo com o qual
passei a dialogar, sentado, numa pedra à entrada do rancho.
Sempre
desnudo e com uma cabaça de água salobra a tiracolo à guisa de cantil - o sitiante me contou que água era salgada
porque ali tudo era mar no tempo de
Cristo -, pedi, ao dono do rancho que me vendesse algo para comer, o que
ele sem me convidar para entrar cobrou,
por uma dúzia de ovos, 200 réis. Dei-lhe a moeda, a última.
A
notícia acalentadora era de que a nossa Esquadrilha de Aviação chegaria, trazendo,
além do apoio militar, notícias de São Paulo e a farta correspondência para a tropa.
Contei o fato ao meu “distinto anfitrião” que ele logo iria ver aviões
naquela altura, ao que ele me respondeu:
"...moço,
o senhor está enganado. É por baixo que a estrada é melhor".
Afinal
de contas os senhores me pediram para falar sobre a Campanha de Goiás e eu
falei. Acerca da aviação, só sei que ela nos reconfortou muito, quando ouvíamos
o roncar de seus motores e víamos esses lindos pássaros metálicos sulcarem a
beleza dos céus goianos.
História tirada do livro: Asas e Glórias de São Paulo.
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