Boa leitura!

domingo, 2 de setembro de 2012

Campanha de Goiás


Um veterano, na perseguição à Coluna Miguel Costa–Prestes nos contou:

- “Fui soldado do 2º Regimento de Cavalaria da Força Pública em 1926, e, como bom militar, sabia muito de disciplina e hierarquia militar, porém de tática sempre ficou por conta dos oficiais superiores. Eu e meus companheiros conhecíamos o significado na obediência consciente e do acatamento às ordens, sem bajulação, fator importante nessa caminhada, eivada de sofrimentos, acarretados pela fome, fadiga e saudade de São Paulo e dos entes queridos. Nosso Regimento desembarcou na cidade de Tavares, ponto terminal da estrada de ferro Mogiana, de onde empreendeu sua marcha até a cidade de Arraias.
A Coluna rebelde, ao passar por cidades e vilas, levava tudo de roldão e o nosso Esquadrão, que fazia a vanguarda da tropa legalista, só encontrava em sua marcha os restos deixados por ela, como cavalos cansados e outras migalhas; o povo se encarregava de esconder coisas que nos poderiam ser úteis, agora, os homens mais abastados da terra camuflavam seu gado e suprimentos.
Naquela louca competição, entre acossados e competidores, nossos cavalos, um a um, foram deixados para trás completamente estafados e nossa marcha, então, prosseguiu a pé. O calçado se gastou, na cadência da passada sobre areia fina daquele cerrados e das botas fizemos alpargatas, que na primeira chuva se inutlizaram.
Ao longo das trilhas e caminhos, ostentando amargurada solidão, de quando em vez, encontrasse sepulturas isoladas, cobertas de pedra, de um bravo inimigo tombado; era mais um herói sepultado no coração da Pátria a pedir uma oração.
Quantos como eles também tombaram anônimos, à beira de um regato sobre os chapadões arenosos, nas orlas dos bosques, nos alcantilados montes das serras, no agreste e sob a inclemência do tempo, sem terem, na hora derradeira, um último adeus, uma gota d’agua a mitigar-lhe a sede e nenhum conforto espiritual!
Devido ao forte calor, o Esquadrão progredia, quase sempre em marchas noturnas. Era um momento em que a nostalgia e a saudade nos tomavam de assalto, principalmente nas madrugadas, quando avistávamos alguma “queimada”. Daí o espetáculo da miragem: “ouvíamos” apitos de trens e tanger de sinos em pleno sertão e “víamos” cidades iluminadas e o próprio prédio Martinelli em construção na capital.
Não podendo juntar meu pano de barraca ao lado do tenente nem ao dos outros, troquei-o por um papagaio baiano, que passei a conduzir a um galho adaptado ao cano de um mosquetão, e com ele dividir a minha solidão no silêncio da mata.
Certa noite, ao deitar, nas margens do Rio São Domingos, tive o cuidado em fazer uma fogueira, para afastar felinos em grande quantidade naquelas paragens. Acordei no dia seguinte, com o capote queimado e aos arredores do leito improvisado, sobre a areia, sulcados de pegadas de onça.
Por ser jovem, talvez, o meu tenente incubia-me de muitas missões. Em uma delas, juntamente com mais um colega, fomos fazer a vanguarda do pelotão dentro da área de operações. Era uma dia de calor escaldante e, à proporção que nos aproximávamos de um rio, de águas límpidas e transparentes, percebemos que o chão produzia certos sons semelhantes de um tambor, na cadência da passada. O calor era insuportável e ao alcançar o rio, precipitei-me em suas águas.
Continuamos a marcha e com ela aumentava aquele ruído estranho sob os nosso pés até que avistamos, na encosta da serra, uma abertura que mais parecia a entrada de um templo. Aproximamo-nos desse monumento em plena selva. Que espetáculo!
De ambos os lados da gruta imensa, duas pedras negras delgadas, com suas faces cortantes, mais lembravam sentinelas permanentes a desafiarem os tempos. Tive medo e me recordei de Dante:

“Ó Tu que vens das dores à morada;
“Olha como entras, e em quem estás fiando
Não te engane do entrar tanta larguesa”

Desafiei Dante: Penetrei no Templo e me queidei extasiado! Flanqueando-o vi outras sentinelas de pedras, olhei para cima e deparei os estalactites, testemunhas seculares de encantador efeito. Pisava eu cristais e estalagmites; um fio de água cristalina corria no centro da nave, tive ímpeto de unir-me às suas águas e correr mundo.
Voltei deslumbrado com essa maravilha mas o dever me chamava para a continuação da marcha; maldito cumprimento do dever e bendita oportunidade de contemplar essa catedral no coração da selva.
Fiquei sabendo depois que toda essa região era chamada Terra Ronca.
Andava descalço e de pés feridos, com o fardamento em farrapos. A condição de simples praça permitia-me o contato com a gente humilde do lugar e sofrer com ela.
Sentava-me em pedras e troncos de árvores para ouvir os contos e lendas, cheios de esperanças e misticismos. Uma delas era a narrativa da Pedra Divina – hoje deve estar dentro dos limites de Brasília:

“...era Cristo, que em sua peregrinação pelo mundo, naquelas paragens, deixara em baixo relevo a marca de seu pé sobre uma grande pedra”.

Não me foi possível a visita a esse lugar em face da continuação da marcha, como também me foi tolhida a oportunidade de constatar outras histórias fantásticas do povo.
Tínhamos ordens de deter e revistar todos os elementos que encontrávamos nessa região. Em consequência detivemos um caboclo que trazia um saco de lona cheio de cartas, o qual ao ser interrogado, respondeu:
“Eu e meus companheiros do Norte, Centro e Sul deste Brasil, vivemos a percorrer a selva e os rios, onde habita o Uirapuru e canta o Rouxinol do Rio Negro, o agreste sertão e as caatingas, os chapadões arenosos e as veredas, a ouvir o canto saudoso da seriema, os pântanos e os lagos, as serras e os montes, os caminhos e as coxilhas sem fim, sob o calor e o frio, o sol, o vento e a chuva, na inclemência do tempo, às vezes montado em um pangaré, a distribuir esta correspondência, pelas vilas povoados e cabanas.
Poucos se lembram de nós, que somos únicos neste pioneirismo sofrido da Comunicação, que em longas jornadas, nos alimentamos com rapadura e jabá e recebemos como paga deste sacrificado trabalho, a quantia de 12 mil réis mensais”.

Visivelmente comovidos, soltamos o patriótico e dígno correio, lamentando a sua triste condição.
Um praça ferido não podendo acompanhar o Pelotão, o nosso comandante deu-me ordens para esperá-lo a fim de conduzí-lo numa dura jornada até o acantonamento seguinte da tropa.
O sítio agora não era aquele dos lindos buritis, das veredas, da Catedral na selva e dos coqueiros de babaçu imponentes, onde a relva, as palmeiras e os gigantes de pedra talhada davam, com orgulho, o tom de suas magestades.
Ficara nesse ermo com minha nostalgia e solidão, entre o chapadão arenoso do cerrado e o agreste sertão, com suas árvores de galhos desfolhados apontando aquela nudez para o céu, como que a pedir misericórdia. O canto saudoso da seriema aumentava a minha melancolia.
A longa espera e a fome me torturavam. Perscrutei o horizonte e divisei, ao alto e ao longe, um casebre e para lá me dirigi, encontrando um caboclo com o qual passei a dialogar, sentado, numa pedra à entrada do rancho.
Sempre desnudo e com uma cabaça de água salobra a tiracolo à guisa de cantil  - o sitiante me contou que água era salgada porque ali tudo era mar no tempo de Cristo -, pedi, ao dono do rancho que me vendesse algo para comer, o que ele  sem me convidar para entrar cobrou, por uma dúzia de ovos, 200 réis. Dei-lhe a moeda, a última.
A notícia acalentadora era de que a nossa Esquadrilha de Aviação chegaria, trazendo, além do apoio militar, notícias de São Paulo e a farta correspondência para a tropa. Contei o fato ao meu “distinto anfitrião” que ele logo iria ver aviões naquela altura, ao que ele me respondeu:

"...moço, o senhor está enganado. É por baixo que a estrada é melhor".

Afinal de contas os senhores me pediram para falar sobre a Campanha de Goiás e eu falei. Acerca da aviação, só sei que ela nos reconfortou muito, quando ouvíamos o roncar de seus motores e víamos esses lindos pássaros metálicos sulcarem a beleza dos céus goianos.


História tirada do livro: Asas e Glórias de São Paulo.



Nenhum comentário:

Postar um comentário